“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra
nela”. (Jo 8:7 NVI)
O texto de Jo 8:1-11
narra um dos episódios mais emocionantes encontrados nos evangelhos. E,
particularmente, apenas o evangelista João o registra, talvez pela proximidade
que tinha do Mestre Jesus.
A narrativa é bastante conhecida
pelos leitores da Bíblia e originou um bordão que se tornou adágio: “atire a primeira pedra”. Na história, os
opositores de Jesus trazem à sua presença uma mulher flagrada em adultério,
questionando-o sobre o que ele pensava sobre o assunto, diante da ordenança
mosaica de punir os infratores com a morte por apedrejamento.
A Lei e o pecado do adultério
“Na Lei, Moisés nos ordena apedrejar tais mulheres.” (8:6 NVI)
Primeiramente, há que se saber o
que a Lei Mosaica fala sobre o assunto. A Torá,
já no famoso decálogo, proibia o pecado do adultério (Êx 20:14;
Dt 5:18). Em Levítico e Deuteronômio, encontramos que tanto o homem quanto a
mulher estariam sujeitos à pena de morte
(Lv 20:10; Dt 22:22-24).
Os profetas também usaram a
figura do adultério para ilustrar o que o Eterno pensava sobre a infidelidade
do seu povo. Malaquias exortou que ninguém deveria ser infiel à mulher de sua
mocidade (Ml 2:11-16). Ezequiel acusa a cidade de Jerusalém (Israel) de se
comportar como uma mulher infiel ao seu esposo (Deus) (Ez 16:1-41). Oséias, por
sua vez, casou-se com uma mulher adúltera, a pedido do próprio Deus, também
para protestar contra a infidelidade da nação israelita (Os 1:2-9).
Em se tratando da pena por apedrejamento
(também chamada lapidação),
curiosamente, apenas para alguns crimes sexuais: mulher que casa sem ser virgem
(Dt 22:13-21), homem com mulher prometida em casamento (Dt 22:23-27), além de blasfêmia
(Lv 24:14-23), idolatria (Dt 13:1-10; 17:1-5), necromancia/bruxaria/pitonismo
(adivinhação) (Lv 20:27), rebeldia aos pais (Dt 21:18-21), sacrifícios de
filhos (Lv 20:2) e desrespeito ao Sábado (Nm 15:35-36), estava prevista essa
condenação. Ao que parece, dada a gravidade do ato, a tradição judaica teria estendido
a punição ao adultério. Outra conclusão, igualmente factível, é que essa forma
de condenação de outros pecados puníveis com a morte estaria subentendida, com
exceção de casos em que um homem se deita com uma mulher e sua mãe, ao mesmo
tempo, que deveriam ser queimados no fogo (Lv 20:14), ou ainda a filha de um
sacerdote, quando estiver se prostituindo, também deveria ser queimada (Lv
21:9).
Vale lembrar que, no Brasil,
desde 29 de março de 2005, o adultério deixou de ser um ato criminoso, apesar
de ainda ser objeto de ações na esfera cível.**
Um fora da Lei?
“Mestre, esta mulher foi surpreendida em ato de adultério… E o senhor,
que diz?” (8:4-5 NVI)
É sabido que escribas e fariseus,
apesar de chamarem Jesus de Mestre, não reconheciam sua autoridade. Mesmo
assim, fazem questão de questioná-lo sobre o que deveriam fazer com a mulher
pega em adultério. Não é engraçado? Ora, como sendo autoridades no assunto,
bastava-lhes aplicar o que a Lei determinava. Pronto.
É evidente, como o próprio evangelista
conclui, que a intenção era unicamente
desacreditar o Senhor (Jo 8:6). Os líderes judeus consideravam o Mestre um
subversor, alguém que, apesar de se autodeclarar filho de Deus, passava por
cima das ordenanças mosaicas. Esse seria o argumento deles, caso Jesus
resolvesse absolver a infratora. Por outro lado, se corroborasse o mandamento, teria
sua compaixão questionada.
Veja que, do ponto de vista da
legalidade, os líderes judeus estavam cobertos de razão: se houve infração à
Lei, era justo que a mulher fosse punida. Mas, o que dizer do infrator? Se a
mulher foi flagrada em ato ilícito, o seu companheiro também deveria receber a
mesma punição (Lv 20:10; Dt 22:22-24). Mais uma razão para acreditar que o que
estava em jogo, definitivamente, não era a aplicação da Lei, mas colocar em
xeque o Nazareno.
Atire a primeira pedra
“Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra
nela”. (8:7 NVI)
Quem era a mulher da história? O
que aconteceu com ela depois desse episódio? Aqui encontramos mais um
personagem anônimo. Podemos imaginar que a mesma tenha se tornado uma seguidora
do Mestre, e que sua vida nunca mais tenha sido a mesma a partir de então.
O fato é que a história dessa
mulher reacende uma discussão: como
estamos lidando com os erros dos outros? Qual é a nossa atitude diante
daqueles que infringem a Lei de Deus? Temos enveredado pelo caminho dos líderes
judeus, prontos para aplicar o juízo, sob a alegação do zelo pela Palavra? Ou
temos optado pela via da indulgência, como fez o Mestre?
Ao que parece, nossas motivações
têm se igualado àquela dos escribas e fariseus, sem considerar que também somos
infratores, o que nos desqualifica como julgadores de quem quer que seja.
Não uma vez, Jesus foi criticado
exatamente pelo tratamento que dava aos ditos “infratores”, e pela amizade que
tinha com os “pecadores” (Mt 9:10-13; Lc 7:34; Lc 15:1-2; Mc 2:15-17). Quando
era indagado, ele era categórico: “São eles que precisam”.
Igreja: um lugar de pecadores
Qual a definição que damos à
igreja? Nada obstante o corpo de Cristo seja identificado como ajuntamento de
“santos”, o que caracteriza a igreja é a presença de “pecadores”, de pessoas
erradas, que precisam de Deus.
Por que será que Jesus insistia
em estar na companhia de pessoas assim? Porque ele acreditava nelas. É disso que precisamos: acreditar nas
pessoas, acreditar que elas podem melhorar, que elas podem mudar. Esse é o
papel da igreja. Não fomos colocados nesse mundo para qualificar ou
desqualificar ninguém.
Que Deus nos abençoe!
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* Mensagem pregada na Igreja de
Cristo Missionária – ICM, em 18/03/2018.